Apologia da arte: Quando a arte não é arte
Viram um homem nu e uma criança, dois signos conjugados que significam pedofilia na cabeça de muita gente; os defensores da moral tiveram o cuidado de borrar o sexo do homem, mas não o rosto da criança e de sua mãe.
Ilustração: Cihan
“Isto não é arte”, gritava um colérico rapaz barbudo, cabelos tosados, de camisa esportivo-social levemente desalinhada. Ele estava no meio de uma turba enfurecida.
Sua frase se espalhou feito rasto de pólvora assumindo colorações e conotações conforme se alastrava em meio à multidão.
“Lixo de arte”, “Arte é lixo”, “Morte à arte”, “Pra que arte?”, “Vade retro satanarte”.
Esta última foi mais ou menos como ouviu uma senhorita com ares de senhora, de cabelos escorridos sobre um dos olhos, e blusa branca de golas grandes, sob que se via um crucifixo.
A situação começa a ficar tensa, a cólera é sempre assustadora e ninguém sabe do que é capaz uma multidão ensandecida.
Em tempos hodiernos, em que gritam, babam e praguejam, as pessoas filmam, fotografam, fazem self e compartilham alucinadamente.
Xingando a arte de pedófila, fazem navegar na rede milhares de vezes a mesma criança tocando o pé de um homem nu. A imagem da criança surfa na rede.
Os defensores da moral têm o cuidado de borrar o sexo do homem, embora não tenham o mesmo zelo com o rosto da criança e de sua mãe.
É mister aplacar os ânimos. Creio que, neste caso, só se conseguirmos responder à pergunta complexa revelada desde o princípio: “O que é arte?”
Apenas respondendo a este mantra milenar talvez possamos dirimir a fúria que beira o colapso.
É mister a apologia da arte. Definamos a arte sob risco de afundarmos no caos. Arvoro-me a fazer, cônscio de enveredar por um caminho inquietante para os mais argutos pensadores.
Faço-o por dever cívico: nossa nação está em risco de afundar na barbárie.

E agora, há um homem nu ali?
O vídeo pisca em milhares de aparelhos mundo afora e adentro, entre play e pause o tempo todo, enquanto incógnitos pedófilos escondidos atrás de telas de notebooks e celulares bebem a imagem da criança, dando asas à imaginação pervertida.
Eles sentem prazer com o mesmo pensamento que levou milhares a compartilhar a cena: Há um homem nu ali que contrasta com a inocência da criança.
É justamente naquele vídeo que não há mais arte, a arte se perdeu no momento em que a pedofilia ganhou asas.
Ali não está mais a arte, porque a arte não é a vida.
A vida não é arte pelo que aquela tem de inconstante e acidental. Na vida não há nem o espaço nem o tempo de criação. Na vida nada se cria, tudo se transforma, dizia antigo poeta.
Quem se arroga a organizar e planejar a vida, ilude-se com a ideia de que a vida seja igual a arte. Em geral, está fadado ao fracasso ou à insânia.
A vida é um acidente. A arte é criação. A vida é caos, a arte é cosmo. O artista, apropriando-se de uma linguagem (seja a palavra, a imagem, o som, o corpo), modela um organismo em vista de um significado. A vida é feita de fenômenos, e os fenômenos não têm significado.
A arte é feita de linguagem em busca de sentidos. É o outro que imbrica aquele objeto artístico à vida. É o outro quem estabelece a relação da obra com o mundo, e eu só teço esta relação, calcado na forma como eu vejo o mundo. Aí está o nó da discórdia. Alguém viu o nu e a criança. No seu repertório de vida, os dois signos conjugados significam pedofilia.

Semente da discórdia
Feita a leitura, o rapaz barbudo de cabelos bem tosados e uma camisa esportivo-social levemente desalinhada ficou colérico e gritou aos quatro cantos sua dúvida existencial:
“Isto é arte?” Ao que a senhorita com ares de senhora, de cabelos escorridos cobrindo um dos olhos, e com blusa branca de golas grandes, sob que se via um crucifixo, ouviu: “Vade retro, satanarte”. Estava plantada a discórdia.
A vida não é arte. A arte é um espelho que reflete a nós mesmos apesar da vida…
É preciso por isso uma apologia da arte. E para isso, precisamos aprender a nos olharmos ao espelho.
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