Como nossos pais
Em memória do anjo torto e alucinado Belchior
Eu conversava com a minha esposa no último sábado (29), justamente sobre nossa memória musical. Ela dizia, do alto de sua competência como psicóloga, que nossa primeira memória musical é justamente a música de nossos pais.
Citou como exemplo nossa filha que, ainda longe de formar suas convicções, gostos e sabores musicais, acompanha e canta nossos apreços.

É fato! Em algum momento somos ‘como nossos pais’.
Júlia, embora comece agora a criar suas primeiras impressões sonoras, com seus sete anos de idade, tem por predileção os gostos contraditórios e diversos de seu pai e de sua mãe.
Todos tivemos momentos como nossos pais. Suas palavras acenderam-me reminiscências infantis.
Percebi que não tenho memórias musicais do meu pai, porque nunca o vi cantando.
Não acredito que ele não tivesse esse tipo de memória, mas entendo que sua forma de ver o mundo não se fazia por meio de canções.
Diferente de minha mãe, cujo costume de cantar no banheiro encheu-me de músicas de Ataulfo Alves, Luiz Gonzaga, Nelson Gonçalves, Francisco Alves, Dalva de Oliveira e tantas outras vozes de ouro como se costumava pechar aquela forma de projetar o som cheio de nuanças, ondulações e modulações estonteantes, a construir em nós a memória afetiva de narrativas poéticas muitas vezes simples, como crônicas do cotidiano.

Reminiscências infantis
Como meus pais, na voz de minha mãe, eu embarquei nesses sons.
Guardei essa memória e com ela construí uma cultura musical versátil, prenhe de poeticidade.
Só na adolescência é que pude contrapor outras modulações sonoras ao meu repertório.
Secos e molhados, Tropicalistas, Mutantes, João Gilberto, Elis Regina, Caetano, Gil, Gal, Tom Zé, Belchior… deram-me ruídos significativos ao que antes era preenchido por melodias e melopeias.
Seguindo o fio de pensamento de minha esposa, eu preparava uma cultura musical para transferir a minha filha.
Para que nela se repetisse o cheiro de uma ‘nova estação’, para que ela conceba que, embora tudo que façamos, sempre seremos os mesmos e viveremos como nossos pais.
Mudamos os sons para mudarmos os tempos, mas somos sempre os mesmos, buscando a nota certa para a grande composição da existência.
Se vivemos tempos de dissonâncias, desafinemos, pois o nosso canto torto é a escrita certa para seguir vivendo como nossos pais.
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