Émile Zola e suas angústias em A Besta Humana

Sexo, morte, vício, ciúme, traição, inveja. Um balaio de angústias reunidas por Émile Zola, em 1890, em A Besta Humana.
O livro é o 17º de um dos projetos literários mais incríveis já realizados, os Rougon-Macquart, conjunto de vinte romances lançados por um dos mestres do naturalismo, cujo subtítulo explicita a proposta: História Natural e Social de uma Família no Segundo Império.
Tempo em que o escritor concentrou esforços para se opor ao reinado de Napoleão III, um sujeito pretensioso a ponto de se achar tão brilhante quanto o tio famoso, dar um golpe de estado e declarar guerra à Prússia do general Otto Von Bismarck.
Custa nada dizer que o exército francês foi trucidado e os vitoriosos unificaram a Alemanha.
Tempo também de descobertas científicas e evolução tecnológica, de drásticas transformações sociais.
O que ofereceu à Zola a matéria-prima para contar a história de homens e mulheres que vivem em torno de uma companhia ferroviária.
Três protagonistas e vários coadjuvantes formam um conjunto impressionante, em um misto de trama policial e análise psicológica do bicho homem.
De uma das coadjuvantes vem a máxima do livro:
“Ah, é uma bela invenção, não se pode dizer o contrário. Anda-se mais rápido, sabe-se mais…mas bestas selvagens continuam sendo bestas selvagens; e por mais que inventem mecânicas melhores, ainda assim haverá bestas selvagens lidando com elas”.
Era Tia Phasie desconfiada que o marido Misard lhe envenenava, ao conversar com o sobrinho Jacques Lantier, maquinista de uma locomotiva velha, mas ainda em uso na linha Paris – Le Havre.
Jacques tem uma obsessão: ele se excitava sexualmente com a morte, o que lhe causa imensos transtornos para emplacar um romance.
Após os primeiros beijos, ou antes disso, crescia a ânsia de matar a mulher em seus braços.
Sem ainda ter executado ninguém, sua patologia está no centro da narrativa.
A primeira ‘quase morte’ aparece com a prima Flore, jovem bonita, de jeito másculo. Ela quer perder a virgindade com Jacques, e ele sente vontade de matá-la. A recusa em consumar o amor deixará uma conta cara a ser paga no futuro.
Ficção e jornalismo juntos
Li a Edição Comentada e Ilustrada, coleção que a Zahar Editores lançou no mercado com livros de domínio público em ótimo acabamento gráfico e textos complementares de especialistas.
A apresentação é feita pelo próprio tradutor Jorge Bastos, em que a carreira de Zola como jornalista é frisada como fundamental na moldagem intelectual de um dos autores mais emblemáticos de uma era.
Zola defendia notícias ricas em minúcias de sensações para enriquecer observações técnicas – o lado repórter ajudou na composição de A Besta Humana, com diversas entrevistas com passageiros em viagens de trem.
Enquanto Jacques briga contra impulsos assassinos, a bela Séverine enfrenta turbulência no casamento com Roubaud, também funcionário da companhia férrea.
Fortes indícios de traição atormentam o sujeito, que vê a mulher alegre em demasia toda vez que passam uma semana na capital francesa.
Em um momento de fúria, ele a enquadra com tapas e chutes e descobre que desde adolescente a esposa mantém um caso com Grandmorin, o idoso presidente da companhia férrea em questão.
Dias depois, o senhor aparece morto e tanto o leitor como os seres que circundam aquele universo macabro ficam na dúvida sobre o responsável pelo cadáver.
Menos o juiz do caso, doido para abafar a história completa – Grandmorin molestou várias mulheres e é um dos representantes da elite local.
É o estopim para um jogo de sedução entre Jacques e Séverine, estimulados por Roubaud – por que um homem traído joga a esposa nos braços de outro, muito mais jovem e interessante?
É aí que começa o estudo de Émile Zola sobre a alienação e a desumanização que o desenvolvimento econômico e tecnológico ofereceu aos homens.

À época, a crítica foi implacável, chamando-o de “literatura pútrida” (Le Figaro), pelas cenas de sexo.
A angústia de Jacques Lantier com vontade de matar as amantes sugere algo de Raskólnikov (Crime e Castigo).
Cena incrível é a do acidente com a locomotiva.
Diante de vastas paisagens invernais, nobres e plebeus se misturam no desespero.
Aquilo seria uma facada em Jacques, pois só no trem Lison ele encontrava tranquilidade.
O veículo nunca mais seria o mesmo, em sintonia com a vida privada do maquinista, como se as feridas nos vagões fossem suas.
Durante o assassinato de Grandmorin, dentro de uma cabine, Jacques viu o vulto do culpado, mas como em Depois daquele beijo, de Michelangelo Antonioni, sem precisão.
Mata-se por amor, herança ou para aniquilar a vergonha?
A ciência é a evolução definitiva do homem?
O que temos escondidos nos recantos da mente?
São perguntas que A Besta Humana suscita sem deixar de divertir com uma história tensa, bem amarrada do começo ao fim.
Jacques passa a admirar o assassino desconhecido por sua coragem de levar adiante o plano de morte, como ele gostaria de fazer.
Séverine será seu grande teste.
Comentários