Lionel, o memorioso

Recordo-me dele ainda garoto, baixinho, quase bobo, cabelo escorrido pouco maior do que corte iêiêiê, sorrateiro e veloz feito uma pulga, pois não é assim que lhe chamam nas Espanhas?, entre marcadores e colegas ostentosos, como Ronaldo, o Gaúcho.
Recordo-me das três Copas do Mundo em que se acreditava em uma nova explosão maradoniana, ou algo que o valha, daquele menino que carrega uma perna esquerda transcendental.
Foi ao Oriente, à Alemanha, ao sul da África, e nada.
Veio ao Brasil, mi mundo, tu mundo, como cantava o pitbull cubano, hinchada louca numa invasão tão bonita admirada por nós outros, ganhou uma, duas, três e estancou no Maracanã lotado.
Falaram em 100 mil argentinos aqui, 200 mil no Chile, na derrota do ano passado para o time da casa (fotos abaixo), e outro tanto desses nos Estados Unidos, na nova decepção, ocorrida na noite de domingo último, na final da Copa América do Centenário.
Penso que torcedor de futebol é quem mais busca a experiência de corpo presente, daí tanta intensidade, tanta paixão – se toda reconstituição do passado é vicária e hipermediada, ele entra no estádio para fazer a história sem intermediações.
Minha deplorável condição de brasileiro amargurado com futebol contribui na escritura de algo grandiloquente sobre o que Lionel Messi fez no Barcelona, nesta década em que estamos.
Na Catalunha é onde mora desde os 13 anos.
Na Catalunha é onde virou o maior jogador de futebol do planeta, com uma sequência de títulos e exibições de fazer Pelé repensar seu marketing.
Assim como Jorge Luis Borges, o conterrâneo instalado entre os cânones da literatura mundial, ele se tornou maior do que o futebol argentino de sua época e mais sedutor que a tradição futebolística da qual deveria pertencer.
A imagem dos dois é mais poderosa do que as letras e o futebol argentino, do ponto de vista europeu.

Beatriz Sarlo falou que ler Borges como um escritor universal, aclamado em todo o mundo lhe provocava uma satisfação imensa, ao mesmo tempo em que batia uma sensação de perda irreparável e de traição com tudo o que o portenho defendeu durante parte considerável de sua carreira: o fato de ser um escritor do arrabalde, de um país distante dos ‘grandes centros’, terra tratada como o fim do mundo pela metrópole.
Por Messi, muito argentino se sente traído ao vê-lo brilhar na Europa com a camisa azul-grená, com a qual é comparado com Pelé e Maradona, e perder campeonatos em sua periferia.
É como se renegasse o gauchismo, o tango, a milonga.
São 23 anos sem conquistas da Argentina, já pensou?
Ambos, Borges e Messi, de vida privada despida de atos espetaculares, ‘sem graça’ para tabloides marrons.
O boleiro até se encheu de tatuagens, deixou a barba ruiva crescer, mas continua bom moço, casado, quieto na dele, sem revidar nem botinada, pouco atrativo para a indústria de celebridades.
Seu negócio é celebrar a bola, o gramado, as gentes bestificadas com jogadas impossíveis para todos os outros.

Já o autor de O Aleph e Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, pensou a literatura argentina como a reunião entre a tradição gaúcha e o intertexto – antes deste virar moda.
De personagens e cenários fantásticos, para muitos, uma doidera só, ele levantou questões filosóficas e ideológicas, em movimento por diversas culturas, sempre em choque com a periferia, com a orilla, como diziam os portenhos dos 30s e 40s sobre aquele lugar entre a planície e as casas derradeiras de Buenos Aires.
Até Borges, a literatura argentina era rica em regionalismo, mas presa ao mesmo.
Ele universalizou o duelo de facas, a trairagem e a vingança sanguinária dos Pampas, a vida rural criolla.
Fez da margem uma estética.
A grande questão de sua obra:
Como seria possível escrever literatura em uma nação culturalmente periférica?
Pois o regionalismo, seja ele argentino, nordestino ou gaélico, nomeia o que desaparece com uma linguagem literária que já não se usa na cidade.
Borges fez o inverso: imaginou uma cidade do passado numa literatura futura.
Já Messi é escravo da memória dos argentinos por Maradona e o bi mundial antológico de 1986, e do presente, em que o tabu de mais de duas décadas sem conquistas impregnou de Jujuy a Santa Cruz.
Após a vitória chilena nos pênaltis, anteontem, uma chuva ácida de mensagens lotou as redes com críticas pesadas ao craque de Rosário – as mais brandas são as já conhecidas sin huevos (nosso ‘sem culhão’) e pecho frio (Peito frio, algo como nosso ‘amarelão’); ainda que nas horas subsequentes tenha iniciado um verdadeiro clamor nacional, mídia inclusa, diante sua declaração de que tinha sido sua despedida da seleção.
Foi tratado como Funes, o memorioso, personagem de um conto borgeano dono de percepção sobre-humana, que decora tudo em segundos, cria novos sistemas de numeração, sem ser aceito como gênio, vivente da escuridão, isolado, mufino até morrer em um cômodo de um rancho.
Decime qué se siente
A história de Funes (uma metáfora sobre a insônia, dizia Borges) faz parte do magistral Ficções, conjunto de 16 contos, divididos em duas partes: O Jardim de Veredas Que Se Bifurcam e Artifícios, publicados aquela em 1941 e esta, em 1944.
Na trama, o narrador inominado conhece Funes através de um primo, em um verão no vilarejo de Fray Bentos.
Tempo depois, Funes cai de um cavalo e fica paralítico, trancafiado em um quarto sem luz.
Ele sabe que o narrador recebeu livros em latim pelo correio e pede emprestado apenas um deles e um dicionário.
Afirma ser o suficiente para aprender a língua românica.
O narrador zomba da audácia do garoto de 19 anos, mas empresta os livros.
O encontro improvável entre os dois acontece naquele mesmo quarto escuro, sem que o rosto de Funes apareça.

Lembrava de tudo, de todos os detalhes de a infância, com a super memória desenvolvida após a queda do cavalo.
Em uma analogia ludopédio-literária forçada, Messi, a cada queda, a cada derrota de sua seleção, resgata episódios na memória dos argentinos, que o jogam no breu, como o quarto sombrio de Funes, aquele que dita a Naturalis historia, de Plínio, da primeira à última página sem saber o que fazer com tanto conhecimento.
Antes da final contra o Chile em Nova Jersey, a segunda em dois anos, Maradona, do alto do cadafalso, sentenciou:
“Ganhamos com certeza. Se não ganharmos, nem voltem”.
A morte de Funes, tão novo, versado em latim com a leitura de meros dois livros, impressionou o narrador borgeano.
O novo ‘fracasso’ de Messi, para uma parte da torcida argentina, é isso: a morte e o desperdício de um talento único, de uma capacidade enorme de improviso e de proporcionar cenas de uma beleza plástica com raras equivalências.
Para os outros.
Cego, como Borges na segunda metade de sua vida, é quem enxerga desse jeito?
Ou futebol só vale a pena com melodrama?
Diga você como se sente.
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