Lonjura
“É para você, meu pai, que dedico essas lenhas linhas. por sobre o universo do seu sorriso que se espalha feito fonte. de um ser que nunca deixou de dizer eu sou seu irmão”, do autor para o poeta e folclorista Deífilo Gurgel (1926-2012).
Fotografias: Giovanni Sérgio

nesse dia que a palavra se veste de ouro e estopim, como um anjo que guarda a cancela dos segredos e rotas. nesse dia onde o rumor do vento faz da face humana uma apologia do vazio e das buscas incessantes, como se nós, loucos mortais, pudéssemos transpor a clareira do óbvio, revestido de algemas e palafitas.

nesse seu dia, poesia, onde o mundo dilaceradamente busca sua identidade como um órfão de paus e mãos, como um horto sem farol e jangada. nesse seu dia, poesia, por sobre o sol a pique, o sal sem dique, tal uma atmosfera que invade o coração das casas pequenas.
nesse seu dia, palavra, poesia, onde pelas réstias da língua do tempo, fomos o tempo todo tragados como uma aldeia sem herói, como um cadafalso perigo iminente. nesse dia, entre a noite e a agonia. nesse seu dia, poesia, entre a península da minúscula salvação, por tudo mais profano e imortal. por onde todos nós, entre a beira e o rastro, entre a feira e o pasto, entre a freira e o casto.
nesse dia, onde a poesia chora. nesse dia onde a poesia implora. nesse dia onde a poesia namora. nesse dia onde a poesia se escora. nesse dia onde a poesia aflora. nesse dia, nessa noite, nessa data, sem rumo e sem mapa. sem gloria e sem mata. sem a mínima vontade de saber o que se passa do outro lado da rua. sem a menor vontade de se levantar e acompanhar os raios de um sol que tinge de brasa, os abraços dos corações humanos.
pois que a poesia é porto.
pois que a poesia é horto.
pois que a poesia é encosto.
nesse dia por onde milhares de palavras pedem perdão pelo esquecimento sem nódoa. pedem pela exata e imediata medição de sorrisos e pólvoras. pela lonjura por onde os sonhos se foram. pelas mãos de um poeta sem a cor do sangue banhando seus versos e seus sorrisos. pela beleza da sua mais absoluta simplicidade.
Então
como um filho
que eu sei pois sempre te amarei
dedico esses meus rascunhos
escritos para ti.
é para você, meu pai, que dedico essas lenhas linhas. por sobre o universo do seu sorriso que se espalha feito fonte. de um ser que nunca deixou de dizer eu sou seu irmão.
porque para meu pai, o tempo era como uma armadura, plena, vasta, simples e bendita. tal qual seus olhos, agora olhando para mim, e eu, feito um novelo contemporâneo, me desfaleço de saudades e lágrimas.
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