Mario Vargas Llosa 80 anos: o dia em que nos encontramos em Madri
Por Bruno H.B. Rebouças
Cheguei a Madrid um tanto contrariado por deixar minha paixão, Barcelona, por três dias.
Além disso, naquele fim de semana de maio, festa de San Isidro na capital, tinha o último jogo da Liga espanhola.
Minha ideia era estar em Barcelona quando os blaugranas desfilassem com a taça pelas ruas da cidade e, em especial, na Plaça Catalunya, próximo as fontes de Canaletes, onde os culés festejam títulos.
Mesmo assim aceitei o convite da minha amiga Elaine Dias e embarquei para Madrid.
Minha história de amor com a capital espanhola começou aquele dia – mas isso é outro episódio.
No segundo dia de turismo, bares, festas e outras atividades resolvemos conhecer a La Latina – um bairro para nós, brasileiros, um distrito para os espanhóis.
La Latina é um dos lugares mais boêmios da capital da Espanha, e um dos mais clássicos.

No centro, próximo ao coração da cidade, a Plaza Mayor, essa região é conhecida como a Madrid de los Austrias, em referência aos reis do império espanhol de descendência da casa Habsburg da Áustria, unidos com a casa Trastámara da Espanha.
Madrid tem uma vantagem em relação a muitas cidades europeias: você nunca se perde aqui.
Logo, erramos o local e descemos para a Gran Vía, uma das maiores e mais elegantes avenidas da cidade.
Descemos a Gran Vía e chegamos próximos ao monumento a Cervantes, tão próximo que se podia ouvir Dom Quixote dizer a Sancho Pança:
“A liberdade, Sancho, é um dos dons mais preciosos, que aos homens deram os céus: não se lhe podem igualar os tesouros que há na terra, nem os que o mar encobre; pela liberdade, da mesma forma que pela honra, se deve arriscar a vida, e, pelo contrário, o cativeiro é o maior mal que pode acudir aos homens”.
Resolvemos pegar um taxi e ir a Latina.
Ao entrar na Calle Cava Baja, o taxista disse gentilmente:
“Aqui é a Latina. Onde vocês querem descer?”.
A rua estava lotada.
Era sábado e o clima estava agradável, convidativo para uma noite inesquecível – as temperaturas em maio são mais altas que março e abril.
Andamos mais um pouco, seguindo a vontade da Elaine, que do nada disse:
“Pode parar aqui”, e desceu.
Paguei o taxi e saí pelo lado direito da via. Ao descer me dei conta que recebi o troco errado, bem menos do que deveria.

Elaine atravessou para o lado esquerdo e eu a segui sem entender.
O lado que estávamos parecia ter os bares mais movimentados.
Subimos a Cava Baja.
Como havia muita gente e a calçada é estreita, dei passagem para dois senhores de preto e uma senhora muito elegante, quase descendo a calçada.
Ao levantar a cabeça e olhar para o senhor que passava por último, me surpreendi, subi a calçada e continue andando.
Parei.
Chamei minha amiga e pedi para ela voltar.
Fiquei nervoso.
Não conseguia dizer a simples frase:
“Aquele cara de cabelo branco é o Vargas Llosa”.
Só saia:
“Vem, o cara de branco é o Vargas Llosa”.
Ela não entendia: não havia ninguém de branco.
Corri dois, três passos, ultrapassei o senhor que acompanhava o cidadão que eu jurava ser Mario Vargas Llosa, Nobel de Literatura de 2010 e Prêmio Cervantes (o Nobel em língua espanhola) de 1994.
No momento em que fui tocar no ombro daquele senhor alto e de cabelo bem penteado, ele virou.
Atônito, consegui articular:
“Desculpa, mas o senhor parece muito com Vargas Llosa”.
Ele sorriu simpaticamente, esticou a mão e disse:
“Sou eu”.
Apertei sua mão e disse:
“Muito prazer. O senhor pode tirar uma foto comigo?”.

Na rua, todos nos olhavam.
Paramos diante de uma placa que anunciava a transmissão de corridas de touro, em homenagem ao padroeiro de Madrid, San Isidro.
Tiramos a foto e ele me perguntou de que local do Brasil eu era.
Respondi: de Santos-SP.
Ele: “Estive em São Paulo recentemente”.
Encontrei meu escritor favorito, entre os vivos, em um misto de casualidade e destino.
Hoje (28/03) ele completa 80 anos, em plena atividade.
Lançou em março seu mais novo romance Cinco esquinas, obra que retrata a sociedade peruana meses antes do golpe de estado e da ditadura de Alberto Fujimori, em 1992.
E as duas faces do Jornalismo: o sensacionalista, amarelo usado para fins políticos pela ditadura peruana para criar escândalos contra adversários. E como instrumento libertador, de defesa moral e cívica de uma sociedade.
Apertamos as mãos novamente e nos despedimos.

Ficou muito claro pela foto e por sua reação que para ele havia sido uma surpresa que alguém o reconhecera numa rua movimentada, boemia e tradicional, onde todos estão ali para pasarlo bien.
A curiosidade de todos que viram a cena recaia sobre o senhor. Não pelo nome, mas pela aparência.
Paramos em diversos bares aquela noite.
Fizemos o que os madrilenhos chamam de Latineo.
Tradicionalmente nós brasileiros, até por logística, vamos a um bar e nele ficamos.
Na Espanha, em localidades com a Latina, Malasañas ou Chueca, regiões de muitos bares e festas no mesmo espaço, a tradição é ir em quantos bares puder e aguentar.
Em todos que paramos, e especialmente no primeiro, onde bebi uma dose de whisky para me acalmar – minhas mãos tremiam –, o garçom que era galego e entendia muito bem o português se meteu na conversa:
“Você está brincando que encontrou o Vargas Llosa aqui em frente?”.
E para quem contamos aquela história madrugada dentro, só acreditavam quando eu mostrava a foto.
Juro que se ela não existisse, seria bem difícil eu mesmo acreditar.
Um escritor é um ser humano como outro qualquer, mas muitos alcançam um nível que parecem flutuar, que estão acima da humanidade com seus parágrafos, história, poesia, melodia e firmeza.
A Vargas Llosa é preciso acrescentar comprometimento e precisão.
A obra dele é universal, cosmopolita, democrática, como Madrid, a cidade de todos.
Quando Vargas Llosa venceu o Nobel em 2010, a Academia sueca justificou:
“Por sua cartografia das estruturas de poder e de imagens, e sua mordaz resistência, revolta e derrota do indivíduo”.
E na obra é perceptível a defesa do homem, da democracia e denúncia contra as agressões arbitrárias das ditaduras e dos militares.
É assim em “A guerra do fim do mundo”, que amplia e universaliza a Guerra de Canudos, ou massacre, pois guerra requer certo equilíbrio de forças em ambos os lados, e a obra “Os sertões” de Euclides da Cunha.

A defesa da democracia e da estrutura regular de poder, contra o mando absurdo de déspotas na América Latina, em “La fiesta del chivo” (A festa do bode – acho lamentável essa tradução literal. O chivo devia ter ficado no título ou deveriam ter deixado no original), que conta história dos cinco personagens que assassinaram o ditador Rafael Trujillo da República Dominicana que, até antes do seu regime cair, tinha como capital Ciudad Trujillo, em substituição a Santo Domingo.
A variedade do peruano nascido em Arequipa, estudante do Colégio Leôncio Prado, que retratou mandos e desmandos da disciplina militar, em seu melhor livro para mim – me falta alguns, entre eles “Conversa no catedral”, cujo tradução do título no Brasil também não ficou boa – “A cidade e os cachorros”.
Ou as contradições do socialismo soviético, e da dita esquerda socialista e suas brigas dogmáticas entre stalinistas e trotskistas que prejudicaram tantos países em guerra civil, em seu livro mais polêmico: “História de Mayta”, que conta a frustrada tentativa de tomar o comando de uma cidade para começar a revolução socialista contra a ditadura.
Baseado na vida de Alejandro Mayta, trotskista, que se alia a stalinistas pensando “no bem maior da causa”, mas é traído e incompreendido, pagando sozinho pela tentativa de assaltar o poder.
O livro ainda denuncia a violência e o momento conturbado do Perú, desde o golpe militar em 1948 até as eleições de 1956 e todo o caos pré-golpe, poucos anos depois que levaram o Perú a uma ditadura até 1980.
Mesmo em uma história de amor como em “Travessuras da menina má”, há espaço para a vida política peruana e os sucessivos golpes militares e tentativas de resistência e luta pelo poder dos socialistas, apoiados pela extinta União Soviética.
Acredito que em alguma página escrita pelo meu destino, aquele encontro com Mario Vargas Llosa estava traçado. O erro do caminho, o momento em que o taxi para, que a Elaine decide atravessar a rua.

Trinta segundos mais ou menos, e eu teria perdido o encontro mágico com esse escritor que hoje completa 80 anos de vida e obra.
Melhor que as autobiografias ou biografias, se você quiser realmente conhecer a vida de um escritor, leia seus livros.
Alguém disse isso de maneira mais poético, mas a ideia é praticamente a mesma.
De ressaca, no domingo vi o Barcelona ser campeão espanhol em um bar vizinho ao estádio Vicente Calderón.
Na saída das torcidas o sol se punha magistralmente atrás do estádio e da ermita de San Isidro, acima do rio Manzanares. Naquele dia, decidi terminar o mestrado em Barcelona e me casar com Madri.
E aqui estou.
Nunca mais encontrei nenhum Nobel caminhando como um ser mortal, como eu e você, pelas ruas dessa cidade totalmente tradicional, cosmopolita, cultural e diversa.
Moro na esquina da Cava Baja e todas as vezes que faço um Latineo, tento lembrar onde exatamente encontrei Vargas Llosa, mas não consigo recordar.
Talvez mudou, faz três anos.
Ou simplesmente foi obra do realismo mágico e na verdade tudo não passou de uma realidade tão real e tão ampla que a supera, acima como o surrealismo e sua amplitude realística.
Pode ser que isso tenha acontecido em um momento exato no tempo e no espaço e, ao caminharmos cada qual em uma direção, o mundo voltou a rodar entediado na sua realidade e conjuntura e tudo não passou de um sonho.
Como aquele que teve o Celta em tentar denunciar a escravidão e a colonização britânica, a fim de defender o homem e sua mordaz resistência, revolta e inevitável derrota, no aclamado: “O sonho do celta”.
Felicidades e vida longa, Mario Vargas Llosa.
Bruno Rebouças, muito bom ler a sua história e a história de vida e obra do seu escritor favorito! Cada detalhe, cada sentimento, só quem tem um ídolo entende sua emoção! Grande abraço!