Millennium: Aula de interpretação e receita de vingança
Stieg Larsson, jornalista sueco que, ao que tudo indica, era cardíaco e não sabia, não viveu para conhecer o sucesso de sua obra maior.
De uma sensibilidade e senso de justiça marcantes, concebeu a trilogia que figura entre as obras mais lidas por seus compatriotas.
Era uma fábrica de boas intenções, queria salvar o mundo, lutou contra neofascistas e racistas de seu país e era ativista dos direitos humanos.
No entanto, no ano de 2004, quis o destino que, esse troll que não perdoa ninguém, morresse de forma tola, enfartando após subir escadas, devido à falha no elevador do prédio onde trabalhava, aos 50 anos de idade.
Após curto período de tempo, a teoria caiu por terra.
Partira sozinho e de modo natural.
A trilogia em questão é Millennium.
Composta por três livros e lançada postumamente, tornou-se febre entre suecos com sua narrativa bombástica.
Inspirada no frisson literário nos moldes de Harry Potter, a produtora de filmes sueca Yellow Bird sentiu o cheiro de papel moeda sendo impresso com intensidade similar ao urubu ao sobrevoar a carcaça e resolveu produzir três filmes mais comercialmente interessantes da moderna safra de escandinavos, talvez desde Ingmar Bergman.
Não arriscaria uma comparação conceitual entre a obra desse gigante do cinema e as três produções.
Entretanto, os dramas psicológicos e a disfuncionalidade das personagens do mestre sueco, perturbados em nível rivotrílico, encontram eco nos deglutidores de junk food e drogas prescritas da nossa modernidade – retratados na narrativa.

Os três filmes são arrepiantes – Os Homens que Não Amavam as Mulheres, A menina que Brincava com Fogo e A Rainha do Castelo de Ar.
É impossível sair para fazer número um no banheiro sem dar uma pausa.
Todos ambientados na Suécia, derramam a estranheza visual das cidades limpas, congeladas, e a fotografia que nos transporta para dentro do círculo polar sem a neve de isopor dos blockbusters de Tio Sam.
Junte-se a isso os atores que constituem, por si próprios, uma experiência sensorial nova para quem tem os tímpanos e neurônios constantemente vilipendiados devido à exposição constante às fórmulas recorrentes e incessantes do cinema que domina grande parte do que é concebido atualmente.
Depois de ver e rever Millennium, é difícil engolir os bonecos de botox e apliques de cabelo dos filmes americanos novamente.
Há que se fazer uma desintoxicação ou reintoxicação.
Os maneirismos e cacoetes dessas figuras, presas em um Twilight Zone de refilmagens a sucederem-se ad infinitum ou roteiros chinfrins, com os quais o acachapante mercado hollywoodiano não para de bombardear o mundo, ficam evidentes demais para se ignorar.
A sensação que se tem é que todas as personagens escandinavas merecem um Oscar de qualquer coisa.
Não daquele que se deu a Angelina Jolie e ninguém entende porque, mas daqueles que se dá a Maryl Streep e fazem todo sentido.
Mikael possui clara inspiração na história de vida do autor dos livros, o que fica bem claro no decorrer das três narrativas.
A própria motivação dessa personagem na trama é espelho das convicções do autor.
Também é retratado, de modo bastante diverso, um crime hediondo que testemunhou quando adolescente.
Na história, o jornalista investigativo gente boa e desenfastiado, assume a causa aparentemente perdida que é a hacker genial, Lisbeth.
Aparência de esquimó, corpo de menina, memória fotográfica e visual do alter ego de Satanás, é impossível não se apaixonar por ela à primeira vista.
Sartre fulminou: “O inferno são os outros”.
Ela conheceu todos! Um inferno por vez.
É tanta desgraceira que os nove círculos de Dante viram férias na granja.
Lisbeth é uma quebra de paradigmas e estereótipos ambulante. Tão simples e complexa quanto se pode ser.
Após o sucesso dos três lançamentos na Europa e no mundo, Hollywood achou por bem fazer o que sabe fazer melhor, uma versão.

Até agora, somente o primeiro foi lançado, sob o mesmo título do original e, dizem alguns ninguéns da Internet, o segundo ainda não se contretizou por conta do inverossímil cachê do Mikael da Terra Nova, o 007 Daniel Craig.
Não são exatamente iguais, nem poderiam.
O dedo de tio Sam traz consigo a invariável desumanização da aparência dos indivíduos e a romantização do roteiro, ainda que se mantenha razoavelmente fiel ao original.
Surpreendentemente, saiu com vários bons atores, além de Craig, como Christopher Plummer e um tal Stellan Skarsgard.
Vale a pena assistir também.
Disse a academia, que este era ainda melhor.
Indicou a cinco prêmios Oscar, inclusive o abajur de nome sui generis (Rooney Mara), inspirado nos sobrenomes de duas famílias famosas no esporte dos EUA às quais ela pertence, e que interpretou a Lisbeth.
Enquanto isso, o original nem sequer foi indicado por melhor filme estrangeiro.
Justiça sempre… Mas, evitemos aqui uma sequência desnecessária de spoiler.
Parabéns, Andrea Régis! Visao crítica afinada, comentários de quem sabe do que está falando e sustenta a sua opinião.