O Quixote de Portinari
Portinari foi o maior pintor do Brasil, disso não tenho dúvidas. Um grande retratista e ilustrador. No ano do seu centenário organizamos uma exposição enfatizando essa faceta menos conhecida desse pintor genial, altamente comprometido com o social.
Portinari concebeu 21 desenhos que seriam destinados a uma edição brasileira ilustrada do célebre D. Quixote. No Museu Castro Maia no RJ tivemos o prazer de ver esses os desenhos originais. A edição do livro com os desenhos infelizmente não saiu e os desenhos foram publicados numa caixa de luxo contendo os 21 desenhos em tamanho original.
Esses preciosos desenhos a lápis de cor também foram publicados num belo álbum acompanhado de 21 poemas e glosas do poeta Carlos Drummond de Andrade.
SONHA ALONSO QUIJANO
Borges
Desperta aquele homem de um indistinto
Sonho de alfanjes e de campo chão,
Toca de leve a barba com a mão
Duvidando se está ferido ou extinto.
Não irão persegui-lo os feiticeiros
Que juraram seu mal por sob a lua?
Nada. O frio apenas. Apenas sua
Amargura nos anos derradeiros.
Foi o fidalgo um sonho de Cervantes
E Dom Quixote um sonho do fidalgo.
O duplo sonho os confunde e algo
Está ocorrendo que ocorreu muito antes.
Quijano dorme e sonha. Uma batalha:
Os mares de Lepanto e a metralha.
DEUS DE VIOLÊNCIA
Cândido Portinari
Quem seraim aqueles três rasgados
E sem cara? Vinham a cavalo.
Mais próximos não davam impressão de gente,
Mais de três volumes se movendo como bandeiras
Esfarrapadas. Rentes a mim, estenderam
algo como uns braços, com vestígios
de deos, segurando uma caneca de folha.
Eram restos de três criaturas
Espaventosas carregando a lepra.
Vinham das bandas do Triângulo. Os sons
que emitiam eram como
Sombras de palavras.
Meu pai chamou-os
para o almoço. Sentaram-se à nossa mesa.
Nós crianças olhávamos intimidados
Depois confraternizados. Quando se foram,
perguntamos: – Que santos são aqueles?
***
Os cavalos dos leprosos se parecem com eles.
Manchas no focinho e no corpo, o mesmo olhar
Mortiço e desacoroçoado.
Homem e cavalo
Vinham vagarosamente
De porta em porta. teriam
A mesma doença?
Arrepiados da cabeça aos pés,
O sol os acariciava, e se moviam lentamente.
Nas noites de treva
O cavalo era o guia, só ele enxergava.
eram como dois irmãos. O alimento,
Repartido e o descanso também…
Seriam dois reis?
***
Os retirantes vêm vindo com trouxas e embrulhos
Vêm das terras secas e escuras; pedregulhos
Doloridos como fagulhas de carvão aceso
Corpos disformes, uns panos sujos,
Rasgados e sem cor, dependurados
Homens de enorme ventre bojudo
Mulheres com trouxas caídas para o lado
Pançudas, carregando ao colo um garoto
Choramingando, remelento,
Mocinhas de peito duro e vestido roto
Velhas trôpegas marcadas pelo tempo
Olhos de cataratas e pés informes
Aos velhos cegos agarradas
Pés inchados enormes
Levantando o pó da cor de suas vestes rasgadas
No rumor monótono das alparcatas
Há uma pausa, cai no pó
A mulher que carregava uma lata
De água! Só umas gotas – Da uma só
Não vai arribar. É melhor o marido
E os filhos ficarem. Nós vamos andando
Temos muito que andar neste chão batido
As secas vão a morte semenando.
*