Viver é incômodo
Vida é incômodo. Viver é revolver-se no incômodo a encontrar o conforto e a comodidade. No desequilíbrio da vida, urge fazer as pazes com o universo para que nos sintamos em casa.
Recentemente muito tem me incomodado os mosquitos. Nuvens deles invadem a casa, tiram o nosso sossego, forçando-nos a estratagemas inúteis para deles nos livrarmos. Inútil. Centenas deles nos fazem vedar as janelas, tangê-los com ventiladores e batermo-nos a noite toda.
Essas criaturas miúdas provocam o desconforto e o incômodo. Mas esta é a nossa morada – temos de encontrar o ponto de equilíbrio e viver apesar deles.
Salva-me e me conforta o fato de que os mosquitos, ao que parecem, não têm afetos a nos picar o ânimo. Fere a pele e arde a noite. Há quem nos fira por dentro.
Há no espírito dos homens uma tendência ao abraço aliado ao da intriga. Provocar no outro o afeto e afetar-lhe com o incômodo.
Leia “Nas asas do desejo”, um poema de Edilberto Cleutom
Mesmo assim, convém igualmente encontrar o ponto estático que nos devolva a morada, para que vivamos conosco e habitemos o outro.
É igualmente infecundo taparmos nossas janelas, vedarmos os nossos poros, pois como fazem os mosquitos as intangíveis agulhas penetram fundo na alma.
Da vida pública à privada, o mundo político e social, aos ambientes de trabalho ou mesmo no seio familiar, somos sempre afetados pelos apelos do incômodo.
Viver é dar-se ao incômodo: resistência e resiliência se alternam para que a paz se estabeleça apesar deles. Ora convém resguardar-se no silêncio, ora buscar o diálogo. Entre um e o outro reside o equilíbrio que permite ao humano conviver.
Arte da interação

Se viver é aderir ao incômodo, conviver é saber o incômodo de mão dupla, pois se somos incomodados pelo outro, a este também somos incômodo. Na arte da interação reside a salvação da convivência.
Encontrar o som que nos enlace, sem o excessivo ruído da fala – mosquito do afeto – que aprofunda a antipatia, e espicaça a intriga.
Chegar ao silêncio e ao diálogo mudo. Ser em si e ser no outro, sem invadi-lo nem ser invadido. Suavizar o contato apesar dos espinhos. Eis a arte da convivência humana.
Viver é incômodo.
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